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Inteiro Teor ANPP - Cabimento para processos até o trânsito em julgado
criminal
Adv. Jairo Sousa

V O T O

O Senhor Ministro Gilmar Mendes (Relator): Inicialmente, verifica-se que a questão atinente à celebração de acordo de não persecução penal nem sequer foi submetida à análise pelo Superior Tribunal de Justiça, de modo que a apreciação por esta Corte resultaria em supressão de instância.

Segundo jurisprudência consolidada deste Tribunal, não tendo sido a questão objeto de exame definitivo pelo Superior Tribunal de Justiça ou ausente prévia manifestação colegiada das demais instâncias inferiores, a apreciação do pedido da defesa implica supressão de instância, o que não é admitido. Nesse sentido: HC-AgR 131.320/PR, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, DJe 10.2.2016; HC 140.825/PR, Rel. Min. Luiz Fux, decisão monocrática, DJe 3.3.2017; e HC 139.829/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, decisão monocrática, DJe 8.3.2017.

É bem verdade que, em casos de manifesta e grave ilegalidade, tais entendimentos podem ser flexibilizados, inclusive por meio da concessão da ordem de ofício, o que penso ser o caso dos autos, também em razão da importância da temática e da intensa discussão que tem ocorrido entre os aplicadores em geral.

No caso concreto, o paciente foi condenado, com base no art. 33 da Lei de Drogas, a um ano, onze meses e dez dias, convertida a pena em restritiva de direitos, por ter sido preso portando 26 gramas de maconha.

Destaca-se que, quando entrou em vigência a Lei 13.964/2019, o processo estava em julgamento no STJ, pendente agravo regimental no AResp. Ademais, este habeas corpus foi impetrado antes o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Em respeito à segurança jurídica, eventual tese firmada sobre o cabimento do ANPP a processos já em andamento quando da entrada em vigência da Lei 13.964/19 deve considerar como parâmetro o estado do feito exatamente nessa data. Não se pode admitir que o benefício eventualmente seja concedido a um réu e negado a outro por questão de dias na demora no julgamento do processo. De modo objetivo, o marco deve ser a situação do processo na data da entrada em vigência da Lei 13.964/19.

Constato que a possibilidade de aplicar-se aos processos em curso o que disposto no art. 28-A do CPP – inserido pela Lei 13.964/2019 e que prevê o denominado acordo de não persecução penal – tem sido objeto de intenso debate doutrinário e jurisprudencial no que diz respeito à sua natureza e consequente retroatividade mais benéfica.

Trata-se de questão de interesse constitucional, regulada pelo art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos: “ a lei penal não

retroagirá, salvo para beneficiar o réu ”. Certamente, discute-se a potencial aplicação de tal dispositivo também a normas de natureza mista ou processual com conteúdo material.

Nesse sentido, preliminarmente, delimito as seguintes questõesproblemas:

a)  O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando dosurgimento da Lei 13.964/2019? Qual é a natureza da norma inserida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício ao imputado?

b)  É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casosnos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo?

Verifica-se, desde já, divergências entre julgados nos Tribunais brasileiros , o que certamente refletirá em visões distintas também no âmbito da Suprema Corte.

A 5ª Turma do STJ tem assentado a aplicação do ANPP em processos em curso somente até o recebimento da denúncia: “ da simples leitura do art. 28-A do CPP, se verifica a ausência dos requisitos para a sua aplicação, porquanto o embargante, em momento algum, confessou formal e circunstancialmente a prática de infração penal, pressuposto básico para a possibilidade de oferecimento de acordo de não persecução penal, instituto criado para ser proposto, caso o Ministério Público assim o entender, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, na fase de investigação criminal ou até o recebimento da denúncia e não, como no presente, em que há condenação confirmada por Tribunal de segundo grau ” (EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp 1.681.153/SP, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, j. 8.9.2020, DJe 14.9.2020).

Já a Sexta Turma, inicialmente, aceitou a aplicação do ANPP para processos em curso até o trânsito em julgado da condenação: “ o cumprimento integral do acordo de nao persecucao penal gera a extincao da punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza juridica mista e mais benefica ao reu, deve retroagir em seu beneficio em processos nao transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF) ” (AgRg no HC 575.395/RN, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, j. 8.9.2020, DJe 14.9.2020).

Contudo, no julgamento do HC 628.647, em 9.3.2021, a Sexta Turma do STJ, por maioria de votos, alinhando-se ao entendimento da Quinta Turma, firmou compreensão de que, considerada a natureza híbrida da norma e diante do princípio tempus regit actum em conformação com a retroatividade penal benéfica, o acordo de não persecução penal incide aos fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, desde que ainda não tenha ocorrido o recebimento da denúncia (AgRg no HC 628.647 /SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Redatora do acórdão Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe 7.6.2021).

Em Tribunais de segundo grau, vale citar a posição pela aplicação do ANPP para processos em curso até o trânsito em julgado da condenação no TRF4: “ O acordo de não persecução penal consiste em novatio legis in mellius, vez que a norma penal tem, também, natureza material ou híbrida mais benéfica, na medida que ameniza as consequências do delito, sendo aplicável às ações penais em andamento. 3. É possível a retroação da lei mais benigna, ainda que o processo se encontre em fase recursal (REsp. no 2004.00.34885-7, Min. Félix Fischer, STJ - 5a Turma). 4. Cabe aferir a possibilidade de acordo de não persecução penal aos processos em andamento (em primeiro ou segundo graus), quando a denúncia tiver sido ofertada antes da vigência do novo artigo 28-A, do CPP ”. (TRF 4, Correição Parcial 5009312-62.2020.4.04.0000, Des. João Pedro Gebran Neto, Oitava Turma, DJe 14.5.2020).

No Supremo Tribunal Federal , a Primeira Turma manifestou-se pela aplicabilidade do ANPP somente até o recebimento da denúncia no HC 191.464 AgR, assim ementado:

“Direito penal e processual penal. Agravo regimental em habeas corpus. Acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP). Retroatividade até o recebimento da denúncia. 1. A Lei nº 13.964/2019, no ponto em que institui o acordo de não persecução penal (ANPP), é considerada lei penal de natureza híbrida, admitindo conformação entre a retroatividade penal benéfica e o tempus regit actum. 2. O ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia. 3. O recebimento da denúncia encerra a etapa préprocessual, devendo ser considerados válidos os atos praticados em conformidade com a lei então vigente. Dessa forma, a retroatividade penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. 4. Na hipótese concreta, ao tempo da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, havia sentença penal condenatória e sua confirmação em sede recursal, o que inviabiliza restaurar fase da persecução penal já encerrada para admitir-se o ANPP. 5. Agravo regimental a que se nega provimento com a fixação da seguinte tese: “o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia”. (HC 191.464 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 11.11.2020, DJe 26.11.2020)

A Segunda Turma não se manifestou especificamente sobre a questão da retroatividade do ANPP. Contudo, há julgados correlatos que podem aportar indicações relevantes.

No HC 194.677 , julgado em 11.5.2021, a Segunda Turma, por unanimidade , assentou que o ANPP deve ser oferecido mesmo após o oferecimento da denúncia em situação de alteração dos fatos ou da imputação durante o processo . No caso, o MP posicionou-se favoravelmente à aplicação do redutor de tráfico privilegiado, alterando-se o quadro fático e tornando-se potencialmente cabível o instituto negocial:

“Habeas corpus. 2. Consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não cabe ao Poder Judiciário impor ao Ministério Público obrigação de ofertar acordo em âmbito penal. 3. Se o investigado assim o requerer, o Juízo deverá remeter o caso ao órgão superior do Ministério Público, quando houver recusa por parte do representante no primeiro grau em propor o acordo de não persecução penal, salvo manifesta inadmissibilidade. Interpretação do art. 28-A, § 14, CPP a partir do sistema acusatório e da lógica negocial no processo penal. 4. No caso concreto, em alegações finais, o MP posicionou-se favoravelmente à aplicação do redutor de tráfico privilegiado. Assim, alterou-se o quadro fático, tornando-se potencialmente cabível o instituto negocial. 5. Ordem parcialmente concedida para determinar sejam os autos remetidos à Câmara de Revisão do Ministério Público Federal, a fim de que aprecie o ato do procurador da República que negou à paciente a oferta de acordo de não persecução penal”. (HC 194.677, de minha relatoria, Segunda Turma, j. 11.5.2021, DJe 13.8.2021)

Já no HC 180.421 , em 22.6.2021, a Segunda Turma ( por unanimidade quanto à tese ) decidiu pela retroatividade da necessidade de representação da vítima nas acusações em andamento por estelionato, crime em relação ao qual a Lei 13.964/19 alterou a natureza da ação penal para condicionada à representação da vítima. Assim, afirmou-se a aplicação da nova norma aos processos em andamento, mesmo após o oferecimento da denúncia, desde que antes do trânsito em julgado . Trata-se de inovação também aportada pela Lei Anticrime, semelhante ao ANPP aqui em discussão.

Considerando a potencial ocorrência de tal debate em um número muito expressivo de processos e a potencial divergência jurisprudencial sobre questão de tal magnitude , impõe-se a manifestação do Supremo Tribunal Federal por seu Plenário , de modo a garantir a segurança jurídica e a previsibilidade das situações processuais , sempre em respeito aos direitos fundamentais e em conformidade com a Constituição Federal.

Conclui-se, portanto, que a retroatividade e o potencial cabimento do acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP) são questões afeitas à interpretação constitucional, com expressivo interesse jurídico e social, além de potencial divergência entre julgados.

1. A natureza jurídica do ANPP: negócio jurídico processual para conformidade do imputado à acusação

É inquestionável o reconhecimento da expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro, desde o surgimento da Lei 9.099, em 1995, ou mesmo antes, com a determinação constitucional de 1988 no sentido da introdução de mecanismos de transação para infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 98, I, CF) ou com os diversos diplomas normativos que previam a delação premiada já em 1990, como inicialmente na Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990).

Trata-se de tendência internacional, inclusive incentivada por diplomas como as Convenções de Mérida e de Palermo, em que os Estados inserem mecanismos negociais tendentes a incentivar os réus a colaborarem com a persecução penal, em troca de benefícios, como a redução da sanção penal.

Nesse cenário, inserem-se institutos como a colaboração premiada, que possui certa finalidade probatória, e também mecanismos de barganha, que almejam a supressão do processo para imposição consentida de uma pena pelo Estado.

Atualmente, o Brasil ainda adota um sistema criminal negocial abstratamente limitado, em que acordos penais são aceitos, em regra, em delitos de menor gravidade, por meio de mecanismos como a transação penal e a suspensão condicional do processo. Contudo, expansão da colaboração premiada já tem ocasionado certo alargamento desse sistema.

Recentemente, também nesse sentido, a Lei 13.964/2019 consagrou na legislação o cabimento do denominado “Acordo de Não Persecução Penal”. Pode-se afirmar que o ANPP é um negócio jurídico processual em que se busca a conformidade do imputado à acusação , ou seja, sua aceitação às sanções pactuadas e a sua submissão, sem resistência, à pretensão punitiva estatal. Trata-se de mecanismo semelhante, em suas premissas e características gerais, à transação penal, da Lei 9.099/1995.

Nesse sentido, com algumas ressalvas particulares, a posição majoritária deste Tribunal, ao interpretar a transação penal e a suspensão condicional do processo assentou que tais institutos não caracterizam um direito subjetivo ao imputado, de modo que o julgador não pode concedê-las de ofício ou contra a vontade do representante acusatório.

Contudo, a vontade do órgão acusador para aceitar ou rejeitar, propor ou não propor o acordo não pode ser concebida como totalmente discricionária e, assim, despótica pela ausência de qualquer controle. Esta Corte construiu a sua jurisprudência no sentido de limitar a atuação do acusador que deve, necessariamente, propor ou aceitar o acordo se atendidos os requisitos previstos na legislação para tanto.

Nos termos do voto do Min. Sepúlveda Pertence, relator do julgadoparadigma à edição da Súmula 696: “ A suspensão condicional do processo, como outros instrumentos da Lei 9.099, e mecanismo — perdoe-se a palavra da moda — de ‘flexibilização’ da obrigatoriedade da ação penal, no caminho do que se tem chamado Direito Penal ou Justiça Criminal transacional. Por isso mesmo, se tem dito que a obrigatoriedade da ação penal cedeu, nas hipóteses em que admitida a suspensão condicional do processo, a um regime de discricionariedade regrada, ou discricionariedade mitigada do Ministério Publico ”. Nesses termos, assentou-se a seguinte ementa:

“Suspensão condicional do processo (L. 9.099/95, art. 89): natureza consensual: recusa do Promotor: aplicação, mutatis mutandis, do art. 28 C. Pr. Penal . A natureza consensual da suspensão condicional do processo - ainda quando se dispense que a proposta surja espontaneamente do Ministério Público - não prescinde do seu assentimento, embora não deva este sujeitar-se ao critério individual do órgão da instituição em cada caso . Por isso, a fórmula capaz de compatibilizar, na suspensão condicional do processo, o papel insubstituível do Ministério Público, a independência funcional dos seus membros e a unidade da instituição é aquela que - uma vez reunidos os requisitos objetivos da admissibilidade do sursis processual (art. 89 caput) ad instar do art. 28 C. Pr. Penal - impõe ao Juiz submeter à Procuradoria-Geral a recusa de assentimento do Promotor à sua pactuação, que há de ser motivada”. (HC 753.43, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, redator do acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, DJ 18.6.2001)

Assim, consagrou-se que, embora o acordo dependa de manifestação positiva do Ministério Público, tal vontade é vinculada aos critérios previstos na legislação, de modo que a recusa deve ser motivada e, assim, controlável internamente no âmbito do órgão acusatório.

Em relação ao ANPP, tal interpretação foi consolidada na própria legislação inserida no CPP pela Lei 13.964/2019: “ Art. 28-A, § 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código ”.

Portanto, o ANPP deve ser oferecido ou aceito pelo MP se atendidos os requisitos previstos na legislação atual, de modo que eventual recusa precisa ser devidamente motivada e pode ser submetida à revisão por órgão superior internamente na instituição.

2. A finalidade do ANPP e suas distinções em relação à colaboração premiada: não se trata de meio de obtenção de confissão e ela não pode ser utilizada se descumprido o acordo

Em meio à expansão da justiça criminal negocial, diversos institutos podem ser apontados como expressões de tal fenômeno: desde a transação penal e a suspensão condicional do processo, passando pela colaboração premiada e agora o acordo de não persecução penal. Embora apresentem semelhanças, existem distinções relevantes, especialmente entre a colaboração premiada e os demais institutos.

Em relação à colaboração premiada, o Supremo Tribunal Federal assentou a sua natureza jurídica como meio de obtenção de prova e negócio jurídico processual (STF, HC 127.483/PR, Plenário, rel. Min. Dias Toffolli, j. 27.8.2015). Isso foi consolidado recentemente na Lei 12.850/2013, conforme o art. 3º-A, inserido pela Lei 13.964/2019: “ O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos ”.

Ou seja, a colaboração premiada possui uma função cognitiva probatória como instrumento para obtenção de elementos que contribuam à reconstrução dos fatos passados do melhor modo possível.

Obviamente, tal premissa não afasta a necessidade de atenção a todas as cautelas já assentadas por esta Corte em relação à necessária desconfiança aos atos praticados pelos colaboradores. A desconfiança com os atos de colaboração decorre da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF), a qual, como regra probatória e de julgamento, impõe à acusação o ônus de provar a culpa, além da dúvida razoável. É produzindo provas contra terceiros que o delator obtém a remissão de suas penas (art. 4º da Lei 12.850/2013), ou seja, um ânimo de autoexculpação ou de heteroinculpação (NIEVA FENOLL, Jordi. La valoración de la prueba . Marcial Pons, 2010. p. 244, tradução livre).

Já mecanismos como a transação penal e o acordo de não persecução penal apresentam natureza distinta, ao passo que não são direcionados à produção de provas , mas exatamente à exclusão completa do processo e de sua finalidade cognitiva epistêmica . Ou seja, enquanto a colaboração premiada busca, de certo modo, produzir provas para se verificarem os fatos imputados, a transação penal e o ANPP excluem por completo o processo e qualquer pretensão cognitiva.

Assim, não se pode, em nenhuma hipótese, afirmar que o ANPP, ao estabelecer uma obrigatoriedade de confissão circunstanciada, tenha por finalidade a busca dessa confissão como prova ao processo . Sem dúvidas, uma das principais revoluções positivas ocorridas na estrutura do processo penal se deu com o deslocamento da posição do réu, de objeto para sujeito de direitos, o que se consolidou com a consagração do direito à não autoincriminação e, consequentemente, a desvalorização da confissão com a imposição do ônus probatório integralmente ao acusador.

Diante disso, é inadmissível sustentar que a confissão realizada como requisito ao ANPP poderia ser utilizada para fundamentar eventual condenação se houver o descumprimento do acordo.

Primeiramente, porque, apesar de pressupor a confissão, na celebração do ANPP “ não há reconhecimento expresso de culpa pelo investigado. Há, se tanto, uma admissão implícita de culpa, de índole puramente moral, sem repercussão jurídica. A culpa, para ser efetivamente reconhecida, demanda o devido processo legal” (CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 129 ).

Em segundo lugar, porque o próprio CPP há muito assenta que a confissão é retratável, ou seja, pode ser retirada pelo imputado, nos termos do art. 200. Embora o dispositivo ressalve, “ sem prejuízo do livre

convencimento do juiz ”, resta claro que uma confissão retratada, sob pena de não ser “retratável”, não pode ser considerada na fundamentação da condenação.

Além disso, há julgados desta Segunda Turma no sentido de que as provas produzidas por colaboradores não podem ser contra eles próprios utilizadas em outros processos, salvo se houver aderência e respeito aos limites e benefícios previstos no acordo (STF, Inq 4.420 AgR, Segunda Turma, de minha relatoria, j. 28.8.2018, DJe 13.9.2018; STF, PET 7.065-AgRg, Segunda Turma, Rel. Min. Edson Fachin, j. 30.10.2018).

Isso porque tais provas, incluindo a confissão, são produzidas pelo imputado com renúncia ao direito a não autoincriminação tendo em vista os benefícios e termos pactuados no acordo, de modo que a sua utilização sem a contraprestação, por qualquer motivo, ainda que descumprimento, é atuação abusiva ao violar o direito à não autoincriminação.

Portanto, em caso de descumprimento, a confissão realizada como requisito ao ANPP não pode ser considerada na fundamentação de eventual condenação . Além disso, tal inadmissível argumento não pode ser utilizado como meio de ameaça ao imputado para forçar o cumprimento do acordo e a renúncia a direitos fundamentais, os quais podem ser a qualquer tempo novamente exercidos.

Observa-se, no entanto, que, por força do art. 28-A, §11, do CPP, o descumprimento do acordo de não persecução penal, poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para eventual não oferecimento da suspensão condicional do processo.

3. Direito intertemporal e retroatividade do ANPP como norma de direito processual com conteúdo material

A legalidade é um primado fundamental do Direito Penal e do Processo Penal, visto que é a premissa fundamental para a limitação (e, assim, a legitimação) do poder punitivo estatal. Para restringir os poderes do soberano, houve a sua divisão em três: legislativo, executivo e judiciário. No âmbito penal, tal separação teve impactos determinantes, visto que a execução de uma pena depende da sua prévia cominação legal como preceito secundário de um crime, o que se situa como atividade exclusiva do Legislador. Por outro lado, a execução penal depende invariavelmente de uma autorização do Poder Judiciário, tanto que o próprio ANPP é submetido à homologação judicial (art. 28-A, §§ 4-8º).

A partir da legalidade, consagrou-se um dos brocardos mais conhecidos do Direito Penal: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF). Assim, afirma-se que a regra em Direito Penal material é a da irretroatividade da lei penal: aplica-se ao réu a lei penal que estava vigente na data do crime. Contudo, por questão de isonomia e limitação do poder punitivo, se surgir uma nova lei mais benéfica ao réu, a ele deverá ser aplicada retroativamente (PELUSO, Vinicius T. Retroatividade penal benéfica. Saraiva, 2013. p. 83-90).

Essa é a lógica no direito penal material. Contudo, em âmbito processual penal, a regra geral consolida-se de modo distinto. Nos termos

do art. 2º do CPP, “ a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem

prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior ”. Trata-se do princípio da imediatidade, ou “o tempo rege o ato”, de modo que a lei processual, em regra, não retroage para atos passados, já praticados.

Sem dúvidas, a distinção entre lei penal material e processual é ponto de intensa polêmica. E, além disso, surgem também normas de conteúdo misto ou processuais de conteúdo material. Conforme Figueiredo Dias, a distinção entre normas materiais (substantivas) e processuais (adjetivas) penais seria axiológica: “ a de direito substantivo, referida a uma relação da vida no espaço social, visa valorá-la dentro da dicotomia axiológica lícitoilícito; a de direito adjectivo, referida a actos no espaço processual (actos processuais), visa enquadrá-los na dicotomia axiológica admissívelinadmissível ou eficaz-ineficaz ” (FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Direito Processual Penal . Coimbra Editora, 1974. p. 34).

Aqui, retomando-se ao objeto central deste caso, o acordo de não persecução penal é um instituto de direito processual penal , visto que se consagra como negócio jurídico processual, o qual acarreta alterações procedimentais e renúncias a direitos processuais, como à defesa e à prova. Nos termos da dicotomia de Figueiredo Dias, tal instituto enquadra-se nas categorias admissível-inadmissível ou eficaz-ineficaz por se tratar de ato processual.

Contudo, o ANPP tem um impacto direto em relação ao poder punitivo estatal. Nesse ponto, diz respeito à dicotomia “lícito-ilícito”, intimamente conectada a outra, que podemos complementar à construção de Figueiredo Dias, “punível-não punível” (GUIMARÃES; GUARAGNI. Acordo de não persecução penal e sucessão temporal de normas processuais penais. In: BEM; MARTINELLI. [Org.]. Acordo de não persecução penal . 2ed.

D'Plácido, 2020. p. 167).

Nos termos do art. 28-A, § 13, “ cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade ”. Lida-se aqui com a amplitude da pena a ser imposta ao paciente e a sua eventual extinção.

O ANPP caracteriza-se, portanto, como norma processual de conteúdo material. Na doutrina, destaca-se: “E mbora formalmente esteja inserido no Código de Processo Penal, art. 28-A, também se reveste de conteúdo de direito material no que tange às suas consequências, apresentando-se como verdadeira norma de garantia e, assim, retroativa. Em outros termos, é norma que interfere diretamente na pretensão punitiva do Estado e não simples norma reguladora de procedimento ” (DE BEM, Leonardo; MARTINELLI, João Paulo. O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal. In: DE BEM; MARTINELLI (orgs.) Acordo de não

persecução penal. D’Plácido, 2020. p. 126).

Assim, em casos de leis processuais de conteúdo material, aplica-se a regra intertemporal de direito penal material (BADARÓ, Gustavo H. Processo penal . 5 ed. RT, 2017, p. 105; PELUSO, Vinicius T. Retroatividade penal benéfica. Saraiva, 2013. p. 160-161). Nos termos do art. 2º, parágrafo único, CP: “ a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado ”.

Nesse sentido, penso que indiretamente isso foi assentado no julgamento da ADI 1.719 , de relatoria do Min. Joaquim Barbosa, em que se reconheceu que existem normas de conteúdo material na Lei 9.099/1995, eminentemente de caráter processual :

“PENAL E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. ART. 90 DA LEI 9.099/1995. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE DIREITO PENAL

MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU. O art. 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal . Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réu contidas nessa lei.” (ADI 1.719, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, DJe 3.8.2007)

Especificamente em relação à suspensão condicional do processo e à transação penal, ambas da Lei 9.099/1995, a natureza processual com conteúdo material (e consequente retroatividade mais benéfica) foi reconhecida pelo Plenário deste Tribunal, em voto de relatoria do eminente Min. Celso de Mello:

“INQUÉRITO - QUESTÃO DE ORDEM - CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES IMPUTADO A DEPUTADO FEDERAL - EXIGÊNCIA SUPERVENIENTE DE REPRESENTAÇÃO DO

OFENDIDO ESTABELECIDA PELA LEI N. 9.099/95 (ARTS. 88 E 91), QUE INSTITUIU OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS - AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA - NORMA PENAL BENEFICA APLICABILIDADE IMEDIATA DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/95 AOS PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINARIOS INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES - NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DO

OFENDIDO - AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. (...) LEI

N. 9.099/95 - CONSAGRAÇÃO DE MEDIDAS DESPENALIZADORAS - NORMAS BENEFICAS -

RETROATIVIDADE VIRTUAL. - Os processos técnicos de despenalização abrangem, no plano do direito positivo, tanto as medidas que permitem afastar a própria incidência da sanção penal quanto aquelas que, inspiradas no postulado da mínima intervenção penal, tem por objetivo evitar que a pena seja aplicada, como ocorre na hipótese de conversão da ação pública incondicionada em ação penal dependente de representação do ofendido (Lei n. 9.099/95, arts. 88 e 91). - A Lei n. 9.099/95, que constitui o estatuto disciplinador dos Juizados Especiais, mais do que a regulamentação normativa desses órgãos judiciários de primeira instância, importou em expressiva transformação do panorama penal vigente no Brasil, criando instrumentos destinados a viabilizar, juridicamente, processos de despenalização, com a inequívoca finalidade de forjar um novo modelo de Justiça criminal, que privilegie a ampliação do espaço de consenso, valorizando, desse modo, na definição das controvérsias oriundas do ilícito criminal, a adoção de soluções fundadas na própria vontade dos sujeitos que integram a relação processual penal. Esse novíssimo estatuto normativo, ao conferir expressão formal e positiva as premissas ideológicas que dão suporte as medidas despenalizadoras previstas na Lei n. 9.099/95, atribui, de modo consequente, especial primazia aos institutos (a) da composição civil (art. 74, paragrafo único), (b) da transação penal (art. 76), (c) da representação nos delitos de lesões culposas ou dolosas de natureza leve (arts. 88 e 91) e (d) da suspensão condicional do processo (art. 89). As prescrições que consagram as medidas despenalizadoras em causa qualificam-se como normas penais benéficas, necessariamente impulsionadas, quanto a sua aplicabilidade, pelo princípio constitucional que impõe a lex mitior uma insuprimivel carga de retroatividade virtual e, também, de incidencia imediata. (...)” (Inq 1.055 QO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, DJ 24.5.1996)

Ou seja, as regras quanto ao cabimento e ao procedimento do acordo de não persecução penal – instituto inserido no art. 28-A do CPP pela Lei 13.964 /2019 – devem ser aplicadas retroativamente, mesmo para processos já em curso por fatos cometidos antes de sua vigência , pois se trata de medida despenalizadora mais benéfica ao réu, caracterizando-se como norma processual penal de conteúdo material.

Agora, considerando a possibilidade de aplicação da nova norma em processos em curso, deve-se questionar a existência de algum limite temporal para tanto. O ANPP pode ser proposto até o oferecimento da denúncia, até a sentença, até o trânsito em julgado ou mesmo depois?

Em relação à suspensão condicional do processo, após estabelecer a possibilidade de retroatividade para aplicação em processos em curso, o Plenário desta Corte traçou um limite temporal a tal cabimento, basicamente em razão da natureza concebida a tal mecanismo específico.

Em julgamento do Plenário, posterior à citada QO no INQ 1.055, assentou-se que a suspensão condicional do processo poderia ser aplicada somente até a prolação da sentença condenatória, ainda que não transitada em julgado:

"’HABEAS CORPUS’. Suspensão condicional do processo penal (art. 89 da Lei 9.099/95). Lex mitior. Âmbito de aplicação retroativa. Os limites da aplicação retroativa da ‘lex mitior’, vão além da mera impossibilidade material de sua aplicação ao passado, pois ocorrem, também, ou quando a lei posterior, malgrado retroativa, não tem mais como incidir, à falta de correspondência entre a anterior situação do fato e a hipótese normativa a que subordinada a sua aplicação, ou quando a situação de fato no momento em que essa lei entra em vigor não mais condiz com a natureza jurídica do instituto mais benéfico e, portanto, com a finalidade para a qual foi instituído . - Se já foi prolatada sentença condenatória, ainda que não transitada em julgado , antes da entrada em vigor da Lei 9.099/95, não pode ser essa transação processual aplicada retroativamente, porque a situação em que, nesse momento, se encontra o processo penal já não mais condiz com a finalidade para a qual o benefício foi instituído , benefício esse que, se aplicado retroativamente, nesse momento, teria, até, sua natureza jurídica modificada para a de verdadeira transação penal . ‘Habeas corpus’ indeferido”. (HC 74.305, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, DJ 5.5.2000)

Poder-se-ia aventar que tal precedente sustentaria a possibilidade do ANPP somente até a prolação da sentença condenatória. Contudo, em uma leitura mais detalhada do inteiro teor do julgado (e da própria parte final da ementa), verifica-se que tal interpretação partiu da premissa de que a finalidade da suspensão condicional do processo é distinta de uma transação penal, em sentido amplo (sendo esta a que mais se aproxima do ANPP). Nos termos do voto do relator, Min. Moreira Alves:

“Ora, não há dúvida de que o artigo 89 da Lei 9.99/95 criou uma transação de natureza eminentemente processual, embora com eventual consequência penal (extinção da punibilidade), em que não se atinge imediatamente o ‘ius puniendi’ do Estado que permanece incólume até que, com o cumprimento das condições dessas suspensão, ocorra a extinção da punibilidade; enquanto isso não ocorre, há apenas a paralisação do processo. Não se confunde, portanto, com a transação a que se refere o artigo 76 da mesma Lei que é eminente e diretamente penal, porquanto em virtude dela há a aplicação de pena restritiva de direitos ou de multa em lugar de pena privativa de liberdade.” (HC 74.305, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, DJ 5.5.2000)

Portanto, tal precedente partiu de premissas distintas , que não são automaticamente transplantáveis para o atual debate sobre o acordo de não persecução penal.

Assim, cabe analisar outros argumentos utilizados para sustentar o cabimento do ANPP somente até a sentença ou até a denúncia. Afirma-se que “ já proferida a sentença, esgotada está a jurisdição ordinária, não podendo os autos retornar ao 1º Grau, mesmo porque a sentença jamais poderia ser anulada, uma vez que hígida ” (CABRAL, Rodrigo Leite. Manual do acordo de não persecução penal. JusPodivm, 2020. p. 213).

Contudo, não se trata de anular a sentença. Não há nenhum óbice à aplicação de norma de conteúdo material mais benéfico ao réu até depois do trânsito em julgado. Se houver necessidade de interrogatório para eventual confissão como requisito ao ANPP, nada impede que se determine diligência (vide art. 616 do CPP) que, inclusive, pode ser cumprida por juiz de primeiro grau por carta de ordem.

E o fato de que possa ter havido sentença condenatória proferida tampouco acarreta óbice. A condenação somente adquire força executiva e consagra maus antecedentes quando definitiva pelo trânsito em julgado. Ou seja, realizado o ANPP, suspende-se o processo. Cumpridos os seus termos, extingue-se a punibilidade e, consequentemente, o eventual processo, no estado em que esteja, juntamente com a sentença.

Também afirmou-se, no julgamento do HC 191.464 AgR, que “ a finalidade do acordo é evitar que se inicie processo, razão pela qual, por consequência lógica, não se justifica discutir a composição depois de recebida a denúncia”. Assim, “o ANPP, como dito, se esgota antes do oferecimento e do recebimento da denúncia e, diferentemente, a suspensão condicional do processo tem como pressuposto o início da ação penal ”.

Primeiramente, limitando-se a uma análise terminológica, o instituto é denominado de “acordo de não persecução penal” e não “acordo de não oferecimento da denúncia” . A persecução penal não se exaure com o início do processo, mas envolve toda a atuação do Estado até a liberação do poder punitivo com o trânsito em julgado da condenação. A finalidade do instituto é facilitar a persecução penal como um todo , de modo que eventual realização do acordo em fase posterior, como reconhecido pela própria PGR, pode ser extremamente útil para resolver inúmeros casos em andamento e contribuir para desafogar o congestionamento do judiciário em termos utilitários.

Ademais, a lógica da retroatividade da norma penal mais benéfica, consolidada na Constituição e em âmbito convencional como direito humano, reside exatamente no ponto de que, embora no momento do fato ou do processamento fosse aplicável norma mais gravosa ao réu, o surgimento de nova norma mais benéfica resulta seja-lhe ela aplicada.

A ideia de ato jurídico perfeito coloca-se somente para normas de natureza processual, quando, nos termos do art. 2º do CPP, somente haverá a aplicação para atos futuros, mantida a validade dos atos praticados anteriormente.

Ou seja, ao reconhecer-se o conteúdo material da norma sobre ANPP, afasta-se a aplicação do art. 2º do CPP e incide a regra de aplicação intertemporal de direito penal material , nos termos do art. 2º, parágrafo único, do Código Penal.

Portanto, respeitosamente, não há como conciliar o reconhecimento da natureza processual com conteúdo material sobre ANPP com a aplicação da regra de retroatividade do art. 2º do CPP , restrita a normas processuais. Nos termos da doutrina majoritária e da jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal, no caso de normas de natureza mista e processuais de conteúdo material, deve-se aplicar a regra de retroatividade de direito penal material (art. 2º, parágrafo único, do Código Penal).

Outro argumento contrário à aplicação do ANPP após a condenação é que “ uma vez já tendo sido proferida sentença (condenatória), o acusado não poderia mais colaborar com o Ministério Público com a sua confissão, que é, como já visto, um importante trunfo político-criminal para a celebração do acordo ” (CABRAL, Rodrigo Leite. Manual do acordo de não persecução penal. JusPodivm, 2020. p. 213).

Como já assentado anteriormente neste voto, diferentemente da colaboração premiada, o ANPP é um mecanismo de barganha em sentido amplo, mais próximo da transação penal, e, portanto, sem finalidades probatórias. O objetivo do ANPP não é, nem pode ser (sob pena de um inadmissível retorno inquisitório) obter a confissão do imputado. Trata-se de instrumento de consenso, que busca a conformidade da defesa para se submeter imediatamente às sanções acordadas.

Por fim, não apresenta amparo a tese de que é possível a proposta do ANPP apenas após o oferecimento da denúncia, visto que a própria transação pode ser cabível durante o processo, nos termos do art. 79 da Lei 9.099/1995, ou a suspensão condicional do processo, se houver desclassificação ou procedência parcial da pretensão punitiva na sentença (Súmula 337, STJ; art. 383, § 1º, CPP).

Destaca-se que foi, inclusive, aprovado enunciado, pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, responsável por matéria penal: “ É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado , desde que preenchidos os requisitos legais , devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A da Lei n° 13.964/19, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019 , conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acordão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão .” (Enunciado 98, alterado na 187ª Sessão Virtual de Coordenação, de 31.8.2020).

Creio que o enunciado vai bem ao assentar a possibilidade do ANPP durante o processo penal, ou seja, para aqueles em andamento quando da vigência da Lei 13.964/2019, antes do trânsito em julgado.

Na íntegra do procedimento que resultou em tal enunciado, afastou-se por completo a tese de que o cabimento do ANPP em processos em curso acarretaria tumulto processual. Para tanto, apresentaram-se dados sobre acordos já celebrados após a nova lei e diversas medidas que estão sendo adotadas pelos órgãos persecutórios e pelos Tribunais para viabilizar a implementação dos mecanismos. Concluiu-se que “ eventuais ‘tumultos processuais’ infligidos momentamente ao Estado-Juiz e ao Estado-Acusação para viabilizar o oferecimento do ANPP no âmbito das ações penais em curso, nos parecem suportáveis e até preferíveis, frente aos diversos benefícios que a celebração de tais acordos representam a médio e longo prazo ” (Proc. MPF 1.00.000.013381/2020-93, Rel. Luiz Cristina Frischeisen, 31.8.2020).

Por outro lado, vale destacar que o fundamento de que “ sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP ” não parece suficiente, por si só, para negar a possibilidade do acordo, sob pena de exatamente esvaziar e distorcer a própria retroatividade da norma até o trânsito em julgado do processo, como previsto no próprio enunciado. De que adianta afirmar a possibilidade do ANPP para processos em andamento, antes do trânsito em julgado, se o proferimento da sentença, por si só, for motivo para sua recusa?

Portanto, penso que o limite temporal para obstar o oferecimento do ANPP em processos em curso quando da vigência da Lei 13.964/2019 seria somente o trânsito em julgado da sentença penal condenatória .

Isso porque, com o trânsito em julgado, inicia-se a execução da pena e encerra-se a persecução penal, perdendo sentido o ANPP em sua função essencial de simplificar e antecipar a sanção ao imputado com a sua conformidade.

Na doutrina, afirma-se que: “ o réu deve poder aderir ao acordo, ainda que superado o momento processual, desde que ainda não tenha ocorrido trânsito em julgado da sentença condenatória. Aos casos em que houve trânsito em julgado, a aplicação da mitigação não poderá ter ultratividade, uma vez que o fundamento para a redução da pena é a colaboração durante o processo, possibilidade que fica absolutamente superada após a formação da coisa julgada material ” (DE-LORENZI, Felipe. Justiça Negociada e Fundamentos do Direito Penal. Tese de Doutorado, PUCRS, 2020. p. 196).

Assim, “ somente não seria cabível para os processos com trânsito em julgado, dada a incompatibilidade ontológica das situações de condenado com o trânsito em julgado e de proposta de acordo de não persecução penal ” (DEZEM; SOUZA. Comentários ao Pacote Anticrime . RT, 2020. p. 112).

Ademais, assentado que o ANPP pode (e deve, se cumpridos os requisitos) ser proposto em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, importante destacar que a ausência de confissão na fase investigatória ou processual até o momento não é óbice legítimo à propositura do ANPP.

Como visto, o acordo pressupõe exatamente que o imputado se conforme com as sanções em troca de benefícios, como eventual sancionamento menos gravoso e a não caracterização de maus antecedentes. Ou seja, impedir o ANPP por tal motivo é macular a sua própria lógica e finalidade, além de violar a paridade de armas no processo penal.

De modo semelhante, quanto às questões-problema de fundo, em seu parecer, a Procuradoria-Geral da República sustenta que “ a aplicação retroativa do art. 28-A do Código de Processo Penal deve necessariamente se desenrolar em momento anterior ao trânsito em julgado da sentença ” (eDOC 85, p. 16). Além disso, afirma que “ eventual ausência de confissão na fase investigatória ou processual não obsta as conversações dirigidas à formação do acordo de não persecução penal se o imputado revelar disponibilidade para apresentar uma confissão em momento posterior àquele previsto no art. 6º, inciso V, do Código de Processo Penal ou em qualquer outro, conforme autoriza o art. 196, inclusive na fase recursal, desde que a iniciativa ainda se mostre útil para o proponente, o que, naturalmente, deverá ser objeto de fundamentação ” (eDOC 85, p. 19-20).

Neste caso concreto, quando da vigência da Lei 13.964/2019, ainda não havia ocorrido o trânsito em julgado . Ademais, pela pena fixada na sentença e confirmada em apelação, cumpre-se o requisito objetivo para proposta do ANPP. Assim, deve o órgão ministerial manifestar-se motivadamente sobre a viabilidade de sua proposta , o que, inclusive, poderá ser controlado, nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP.

4. Dispositivo

Diante do exposto, concedo a ordem de habeas corpus, para determinar a suspensão do processo e de eventual execução da pena até a manifestação motivada do órgão acusatório sobre a viabilidade de proposta do acordo de não persecução penal , conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP.

Proponho a fixação da seguinte tese :

É cabível o acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento. Ao órgão acusatório cabe manifestar-se motivadamente sobre a viabilidade de proposta, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle, nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP.

É como voto.